terça-feira, 29 de abril de 2008

ABRIL E A GERAÇÃO TELENOVELA


A bengala de ouro, cingida de diamantes, e as lentes de contato de última geração esperam, sob forte esquema de proteção, o barão do dinheiro. O magnata acorda, espreguiça-se e sinaliza. A tecnologia avançada capta sua vontade e logo vem ao seu inteiro dispor o atento e leal consultor de investimentos futuros. Sem alvoroço o abastado dá os primeiros passos no novo dia. Doutorados e doutorandos lhe trazem café à cama e aclimatam o ar condicionado. Controle remoto à mão, o homem poderoso liga a TV de LCD e toma-se de enfado. Desliga. Cem anos de imigração japonesa no Brasil fundaram a segunda nação do sol nascente. O majestoso neoliberal ri o cínico sorriso herdado dos cafeicultores paulistas e agropecuaristas mineiros da República Velha. Pega o livro de cabeceira, “Evangelho da vida fácil”, abre na página 2008. Está feliz. O tormentoso aprendizado das últimas décadas lhe ensinou que jogo de cintura não faz mal.
Virou quimera o pesadelo da transição para a democracia. Aquele barulhento brasileiro do final do século XX, incisivo, irreverente, na rua, carregando um sapo revolucionário barbudo como amuleto, sumiu. O temor de ver Leonel Brizola presidente - nacionalista contestador da aliança para o progresso imperialista - se foi. Tempos idos, vencidos. Num luxuoso baú, arquivos implacáveis. A foto esmaecida de Juscelino Kubitschek, o ex-chefe da nação que construiu Brasília. Na calma da manhã chuvosa, o barão revê revistas dos últimos sessenta anos. A guerra fria, GetúlioVargas voltando pelo voto direto, o suicídio, a carta-testamento, a ferocidade inconseqüente do governador Carlos Lacerda. O carismático Janio Quadros condecora Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e, dias depois, renuncia à presidência.
Pressão contra a posse de Jango, o vice. A experiência parlamentarista, o plebiscito e o avassalador sim ao presidencialismo. João Goulart assume, anuncia reformas de base, busca um país menos desigual. O golpe de abril de 1964, o regime militar. Obscurantismo, fim das liberdades democráticas, cassações, perseguições, exílios, seqüestros, prisões, torturas, desaparecimentos, mortes. Vinte anos depois, abertura política. Anistia. Tancredo Neves vence a última eleição presidencial no Colégio Eleitoral e morre antes da empossar. Absorto, pensando no passado ainda presente, o amo desperta com o toque do interfone. A secretária informa a chegada dos jornais matutinos e pergunta se deseja mais alguma coisa
Quatro décadas após a queda de Jango, o Brasil vira país privatizado, paraíso do lucro exorbitante, da indústria automobilística, da Nestlé, das Casas Bahia, dos leilões de poços de petróleo, das sementes transgênicas marcas Bayer e Monsanto. Aumenta o fosso entre os poucos ricões e os milhões de pobretários. O primeiro mundo, satisfeito, sugere manter a coroa na cabeça do ex-metalúrgico com pinta de ator hollywdiano. O modelo vídeo-financeiro de capitalismo trouxe a tecno-ciência do mando. Embriagadas de isenção fiscal (a farra chega a cerca de 65 bilhões e 500 milhões de reais), abrigadas no telenovelismo e amparadas na vanguarda operária padrão, as multinacionais controlam, como nunca, os meios de produção e reprodução da vida. Greves passam a acontecer em ação combinada com os patrões.
Porta-vozes da flexibilização trabalhista e desregulamentação econômica viram celebridades. A idolatria do mercado desfaz no ar o universo humano. Desintegra a realidade e, via-satélite, faltando partes, em formato televisivo, diz devolvê-la integral, gratuitamente, ao telespectador. Até põe à venda imagem maquiada de competência e idoneidade. Para livrar-se da alienação, recuperar a liberdade e adquirir saber profícuo, ao invés de ler, basta emprenhar-se de telenovela. Sabe o leitor, a verdade não é essa, mas aparenta ser. Apesar de não ter bengala, diamante e lente de contato, o neo-romântico se enche de ânimo com coisas simples. O antológico show de MPB 4 e Toquinho, em Natal, é um exemplo. Afinal, em abril de 1916 Florbela Espanca já brindava a emoção com os contos “Amor de sacrifício”, “Alma de mulher” e “A oferta do destino”. Aproveito os sapatos de ferro de Florbela, calço-os e caminho...

Renan Ribeiro de Araújo – Advogado