sexta-feira, 28 de março de 2008

CIVILIZAÇÃO E ÉPOCA


Caros blogueiros

A páscoa passou? Acho que não. Vejo que ela está dentro da gente. A oportunidade de mudar, reestudar, rejuvenecer idéias e práticas é uma ordem para todos nós, no dia a dia. Se a páscoa passou, então, feliz Natal. Ou feliz Macau? Parabéns, Giovana, pelo intento acadêmico conquistado, sem apadrinhamento, por méritos próprios. Já que você disse que eu posso dizer, te digo: deus te abençoe. Em anexo, artigo Civilização e época, que foi a público no vespertino O Jornal de Hoje, em 27/3/2008.

Um abraço.

Renan


CIVILIZAÇÃO E ÉPOCA

Um curso é um fluxo. Aula dirigida, bola de fio desenrolando, a um fim determinado. Mansinho, envolvente, culmina num resultado. Lembro minha primeira lição no Curso de Datilografia Presidente Médici, em Macau, no início dos anos 1980. Cérebro, mãos, dedos, teclado. O tac tac do martelete. O cilindro do papel, o espaçador das linhas, a disposição das barras dos tipos, a fita entintada. A cada pensamento fugidio, um dedo afundava entre as letras. Não desanimava. Afinal, depois de aprender o manuseio dum invento tecnológico que imprime o alfabeto, ninguém será o mesmo. Isso, hoje. Pense o leitor nesse dote, naquela época. Oh! Notável avanço. Para tal, fui orientado. Foi papai. Disse-me ele: Renan, precisas saber usar a máquina de escrever. Toque luminoso. Segui adiante.
O professor João Elias tirava dúvidas e nos incentivava, sem enfado. Logo no exercício nº 1, percebi que os dedos são diferentes em agilidade e firmeza. Asdfg asdfg asdfg... Quando o indicador tocava “f” “g”, meu dedo mínimo involuntariamente abandonava o pouso no “a”. Repliquei: Está difícil manter o dedo mindinho pousado na tecla “a”, principalmente quando teclo o “g”. João, paciente, respondeu: Tem razão, esse dedo é meio órfão de habilidade. Amigo leitor, exercer o direito de datilografar com certa rapidez e eficácia é muito útil. Habituado à máquina, declinei na caligrafia. Vou te contar. Após passar no exame de admissão ao ginásio, estudei a 5ª série com Servílio Sena, na recém inaugurada Escola Estadual José Olavo do Vale, situada na histórica Rua do Cruzeiro. Servílio, inteligente, ágil jogador de futebol, era hábil no escrever à mão. Prestei atenção, o imitei e melhorei minha escrita de próprio punho. Virei datilógrafo. Regredi no desenho dos caracteres representativos dos fonemas.
A aula de datilografia se dava em um imóvel situado na Rua Martins Ferreira, Centro. A mesma via pública de minha residência, só que do lado oposto. Do lado de cá, no mesmo trecho, o comércio de Afonso Delmiro, pai de José Antonio, recentemente chefe do poder executivo local em dois mandatos; a Drogaria Bom Jesus, pertencente a meu pai, ex-deputado Floriano Bezerra; a morada do imortal poeta Edinor Avelino; os fundos da casa de José Tomaz; a Distribuidora Macauense de Veículos, DISMAVEL, de vovô José Ribeiro da Costa; o nosso lar, com área, batente popular ao ar livre, beco, quintal, mamoeiros, banheiro, galinheiro, casinha de pombos e escada para um quarto separado; o domicílio de Virgílio Barbosa; o Palácio Presidente Médici, sede do poder legislativo, e a tipografia de José Heliodoro de Oliveira, três vezes vereador e três vezes prefeito. Remontando o quebra-cabeça, em 1963, Lincoln Gordon, embaixador estadunidense, visitou Macau. O golpe militar deu-se em 1964. Vinte anos de acintoso regime ditatorial. Então, o que Macau não é, é o que deixou de ser, devido à contundente e atrasada repressão política.
Em casa, no aposento separado, ouvi música numa pequena radiola, menor que um LP, li revista, jornal e livro. Recebi pessoas, analisei conjuntura, escrevi, tracei planos. Bons tempos. Agora, em 2008, pesquisa revela que 26% dos brasileiros admitem a tortura, índice que chega a 42% nos estratos sociais mais privilegiados. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal passou a ser presidida por um parlamentar da bancada da bala. Crise civilizacional e contradições de uma época. Falam até numa revolta dos famintos. Ah! O curso de datilografia já não existe. O prédio da Câmara Municipal hoje se chama Palácio Afonso Solino. Sim, Afonso Solino Bezerra, irmão de vovó Querubina, esposa de Venâncio Zacarias de Araújo, fundador do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Sal de Macau e ex-prefeito.
Alegria no cotidiano. Canindé, o Bigode, torcedor do América, frentista em Nova Parnamirim, com dois dedos, cordas vocais e o céu da boca, imita apito de juiz de futebol, guarda de trânsito, e vários pássaros. Isaac Newton, meu sobrinho, internauta iracundo, é profundo em segredo de informática. Isaac segue na velocidade da juventude. Eu, neo-romântico, cavalgo na fagulha do relâmpago que lampeja fraternidade. Avivo-me no trovão, abraço a chuva. Esperando o ramalhete de sol vindo do cais, atualmente, num computador, sem comodismo intelectual, busco excitação e inspiração para escrever.

Renan Ribeiro de Araújo – Advogado