segunda-feira, 10 de março de 2008

SERTÕES E HOMENS


Caros amigos blogueiros,

Aí vai o artigo Sertões e homens, publicado no O Jornal de Hoje de sábado/domingo, dias 8 e 9 de março.

Abraços,

Renan


Como bem disse o médico e escritor João Guimarães Rosa, “o sertão está em toda a parte”. Sabe o leitor, quem produziu o romance “Grande Sertão: Veredas” tem cacife pra dizer. Recentemente, em reportagem do mensário Caros Amigos sobre o fenômeno da pistolagem, a socióloga Peregrina Cavalcante, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Ceará (UFC), autora do livro “Como se fabrica um pistoleiro?”, e diretora do documentário “Seresertão”, vencedor do Prêmio Pierre Verger 2006, concedido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), aponta que persiste, no Brasil, uma cultura de “guerra justa”. Esse comportamento coletivo, segundo ela, “justificou” o genocídio dos aborígenes brasileiros. Não precisa ser uma Maria Dezonne Pacheco Fernandes, escritora de “Sinhá Moça”; nem um Castro Alves, autor de “Os Escravos”, para saber que também milhões de negros foram assassinados em nome da ordem escravocrata. Nos séculos imediatamente subseqüentes ao descobrimento do Brasil, o europeu, colonizador, queimou índios e negros, qual carvão, na fornalha do desenvolvimento. Peregrina Cavalcanti enlaça esse viés totalitarista com o hábito de vingança privada. Diz ser um legado do “patriarcado dos grandes sertões”. Para ela, esse agir “ainda está muito vivo”. “Não pensemos que não existe mais por conta da globalização. Não, o sertão está dentro da gente.”
Certa feita, fazendo audiência na Comarca de Açu/RN, que, à época, ainda abrangia demandas de Ipanguaçu, o magistrado comentou que este último município apresentava um dos maiores índices de violência no Rio Grande do Norte. Afirmou ser comum, em Ipanguaçu, o homem portar instrumento de defesa ou ataque, arma de fogo, ou branca. Conheço o lugar, é tão bucólico e lindo que fica difícil de acreditar. Lá tenho amigos, dentre eles o poeta Pedro Ezequiel. Indo mais pra dentro, em terra cearense, na região do Vale do Jaguaribe, a socióloga Peregrina diz que andar armado é símbolo de poder, de ser homem, de ser respeitado. Cotidianamente, ao completar 15 anos o filho ganha de presente uma arma. Já Pendências, o próprio nome remete a questão não resolvida. O pendenciense é corajoso, valente, e não gosta de levar desaforo pra casa. Outro dia, estava eu em Carnaubais, conversando em um clube, de repente uma tremenda luta corporal entre dois grupos de jovens. Imbuído das “Baladas para El-Rei”, de Cecilia Meireles, resolvi intervir para acabar a briga. Dei alguns passos em direção à contenda, e disse: Vamos parar com essa confusão! Santa Luzia me ajudou e os rapazes escafederam-se escada abaixo. Sumiram. Os nativos me alertaram do perigo de morte que eu havia corrido. Disseram-me que a onda era uma disputa de valentia entre turma local e grupo vindo do vizinho Alto do Rodrigues. Em Macau, na costa branca das salinas, conheci Lindonor Batista, hoje falecido. Seu Lindonor jamais esquecia sua faca embainhada na cintura. À parte tudo isso, é comum ouvir gente dessas comunidades dizer que teme morar em Natal, devido à violência urbana.
Realmente, leitor, o modelo econômico e cultural consumista tem expulsado os campesinos do campo, sem nada lhes oferecer em troca. Não sou eu que estou dizendo, é o que todos nós estamos vendo. O camponês, vítima da seca e da barragem, escorraçado pela grilagem e pela cerca, mal visto pela monocultura de exportação e pelo monopólio do solo, descamba em êxodo para as regiões metropolitanas. Em busca de emprego e renda, aporta na capital. Distante da Caipora, desenraizado, estigmatizado, com fome, escapa amontoado em aglomerados periféricos densamente habitados, onde o governo institucional é ausente. Reside em moradias insalubres, sem acesso ao saneamento básico. A realidade da selva de pedras se lhes oferece infernal. Excluído do lazer, da escola e do trabalho, compõem o explosivo ambiente de favela. Nesta, o Estado normalmente chega em forma de treva, quase nunca como luz. Em modesto entender, leitor, uma saída seria a reforma agrária. São mais de 4 milhões o número de trabalhadores rurais sem terra. Dizem, entretanto, que na arena política não existe correlação de forças favorável a essa realização. Enquanto isso..., o apartheid social vai se aprofundando.
Outra alternativa é começar de novo. O ser humano é um animal vivo, vertebrado, heterótrofo, primata, bípede, mamífero, que se mantém, anda e corre em posição ereta, e é capaz de adquirir letramento. Por fim, em continuando tudo como está, bebamos Patativa do Assaré: Pra gente aqui sê poeta, E fazê rima compreta, Não precisa professô; Basta vê no mês de maio, Um poema em cada gaio, E um verso em cada fulô.

Renan Ribeiro de Araújo – Advogado