domingo, 24 de fevereiro de 2008

FLORIANO E AS OITENTA PRIMAVERAS


Papai, Floriano Bezerra de Araújo, entrou nas oitenta primaveras em 22 de dezembro 2007. Fizemos, em seu – nosso - lar, uma pequena grande comemoração. Pra muita gente – e prá nós familiares, principalmente - Floriano Bezerra é persistente emblema de livre pensador que defende o ideal coletivo. O leitor, arguto que é, tem a dimensão de tal ética de vida. Um viver que exige compaixão, convicção ideológica, generosidade e renúncia ao enganoso chamariz da corrupção. Floriano, homem do trabalho, entendeu a dialética e empunhou a bandeira de elevação da classe social desvalorizada pelo capitalismo. Pagou caro. No chofre da desastrosa contra-revolução de 1º de abril de 1964, teve os direitos políticos suspensos e os mandatos de deputado estadual e de dirigente sindical cassados. Foi preso, torturado, ameaçado de fuzilamento.
Qual cristão supliciado pelo anti-Cristo, Floriano amargou anos e anos, diariamente, terrível perseguição. Lógica alienígena, de beligerante matiz golpista, o inquinou de subversivo comunista. A acusação reacionária teve efeito brutal. Colou à imagem pública de papai - qual marca de ferro no escravo - a pecha de criminoso perigoso e armado. A trama maquiavélica foi ovacionada por autoridades civil, militar e eclesiástica, e levada aos escaninhos do país por maledicente gratuito, olheiro nativo e espião estrangeiro. Vale salientar, milhares de outros patrícios sofreram tanto ou mais que papai. Assim, durante quase duas décadas, Floriano foi sistematicamente isolado do povo. Profundo conhecedor do conjunto das estruturas sintáticas da língua brasileira, papai foi duramente reprimido quanto à utilização da frase. Tentaram inclusive lhe proibir o acesso ao sentido pelo qual se percebe as sensações de temperatura, extensão e consistência. Mas o martírio excessivo, que parecia infinito, passou. Passou sem que Floriano de modo algum se ausentasse da presença do amor, ou se tivesse negado a cooperar na oficina do bem. Para o sofrimento, não tem palavra. Restaram cicatrizes profundas e seqüelas à vista de todos. Sabe o leitor, perdoar é diferente de esquecer. Como se o drama decorresse de um complicado conflito de paixões, o ex-governador Dinarte Mariz veio de Brasília, depor na defesa de papai.
Há trinta anos eu estava apenas debutando. A tempestade inquisitorial não havia passado de todo. Saber a verdade no Brasil ainda era paranoicamente proibido. Falar em liberdade e igualdade era crime de lesa-pátria. Papai nada comentava conosco. Sabia ele, na própria pele, o perigo que significava nos pôr a par da ditadura encalacrada. Talvez Floriano, com um quê de sábio, vislumbrasse não ser o momento, ou que haveria de ser outra a via do nosso entendimento. Aliás, não era só eu, a grande maioria do povo estava por fora do lamaçal presente no fazer político legal da época. Em verdade, aos dezesseis anos eu apenas iniciava na curiosidade sobre tal assunto. Chamava-me atenção o interesse de papai pelo noticiário, sua gentileza, ilustração, fineza e educação. Como se fosse lei de compensação, inumeráveis pessoas fizeram questão de me externar ser papai um homem trabalhador, inteligente, bom, leal, honesto e corajoso. Em síntese, a subversão advinha da crença no ser humano como sujeito do seu próprio destino, da capacidade de distinguir o “verdadeiro” do “falso”.
Numa noite de verão, orvalhada e calma, lua crescente, brisa soprando da praia para o mar, maré morta e morna, perto da praia, papai me falou sobre o ciclo hidrológico. Não sei onde ele queria chegar. Relatou-me fenômenos interessantes. Lençóis subterrâneos, gêiseres, transpiração das plantas. Hidrosfera, mar fechado, mar aberto, mar interior. Costa, onda, iceberg, tsunami, tornado, furacão. Rios, regimes pluvial, nival e periglacial. Papai falando e eu pensando como seria a rede hidrográfica... água salgada, água salobra, água doce. Papai, e a política? Meu filho, política é prática solidária que constrói bons relacionamentos... ciência para edificação da felicidade coletiva. Papai, e aí? Aí, meu filho, tenha paciência, um dia você vai entender. No núcleo básico de família, nove irmãos: Silvana, Saly, Rosenberg, Salusa, eu, Rita, Sama, Siluck, Samita. Cada um com sua história. Algo em comum: nunca vimos papai com arma de fogo ou externando sentimentos de ódio, revanche ou rancor. Testemunhamos, sim, intramuros, sua dor intensa, sua indelével tristeza. No ano III da Agremiação Carnavalesca os Bruxos, de Macau, preparando o carnaval de 1982, o nº 5 do Jornal “O Caldeirão” publicou o poema de Floriano Bezerra, intitulado “Cantar Madrugador”. Em 1986, tentando reaver o mandato de deputado estadual, eu e papai, com fome, num sertão abrasador. Um camponês nos presenteou um banquete de peba. Solidário, ainda que represado, Floriano se manteve livre e íntegro, com esperança viva no alvorecer seguinte.
Finalmente, generoso leitor, a festa pelas oitenta primaveras de Floriano transcorreu em estado de graça. Papai presente de corpo e alma, mamãe nos nossos corações. Filhos, netos, genros, noras, amigos... Reunião alegre, limpa, cheia de conteúdo, diálogo, riso, beijo e abraço.
Renan Ribeiro de Araújo