quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

A RAZÃO DO MEU CORAÇÃO

Sou neoromântico. Gosto mais de gente do que de dinheiro. Para os ideólogos do fossilizado e belicoso comitê central do bushismo, sou um idiota latino-americano. A razão de meu coração confabula com o coração de minha razão e decide respeitar a objetividade e a subjetividade do outro. Minhas verdades são inteiras, mas, sabe o leitor, até sobre tese científica existe divergência de opinião. Não sou perfeito. Procuro ser sincero. Faço autocrítica e travo constante luta contra minhas próprias disposições espirituais inferiores. Não cultivo ódio. Não sou de criticar pessoas. Não sinto prazer em derrubar meu semelhante e acho que ninguém precisa disso. A dignidade da vitória está em vencer sem pisar no pescoço da mãe. Não sou Jesus, mas também desejo a felicidade de todos. Faço o que posso. Não é fácil construir o bem nesse universo de bilionésimos de quilômetros, nesta Terra de partidos partidos e organizações virtuais, neste tempo de riqueza ultra concentrada, arrogância ilimitada e legitimação da violência.
Ao plantar e regar árvores, curo ansiedades, treino a paciência e exercito a introspecção. Adoro testemunhar o brotar da semente, ver o nascente e o poente do sol. Para os que me mandam plantar batatas, digo que recentemente plantei dois mamoeiros, um pé de pimenta malagueta e uma aromática laranjeira. Como diz meu vizinho já na quarta e boa idade, que me ensinou a podar, as plantas pegaram. Meu caro leitor, sou das Américas, assim como a quase totalidade das bromélias, mas não sou planta, não produzo o próprio alimento. Tal qual você, sou humano, onívoro, adaptado a comer animais e vegetais. Para um homem que busca melhorar-se é duro digerir mesquinharias. Angustia e causa torpor. Minha bílis serve à digestão das gorduras e absorção das substâncias nutritivas e é inservível para a política.
Quero ser um mutante futurista que atua no presente do indicativo sem esquecer os pretéritos perfeito, mais-que-perfeito e imperfeito. Mas nem sempre querer é poder. Apesar de não ser conformista, às vezes me contento em sentir o equilibrado perfume da floresta, o cheiro de água de colônia vindo das selvas. Neste Brasilzão de meu Deus, hasteio bandeira e canto hino para a esperança vermelha do iconoclasta Osório Almeida, respeito a fúria do rapper Mano Brown, assimilo as lições de cidadania do centrado Mery Medeiros e admiro a disciplina cultural do mestre Leão Neto. Concordo com a jornalista Marilene Felinto quando escreve que é melhor olhar para os povos estrangeiros através da arte que produzem (e não da política que fazem) e com o professor Hélio Santos quando este afirma que ninguém nasce racista. Um campesino falou, e nunca esqueci: fartura bendita se constrói com trabalho em mutirão.
Falando em camponês, minha memória seletiva ativa lembranças do sertão. Chuvas bem distribuídas no período chuvoso; a cerca; Canudos e Antonio Conselheiro; Caldeirão, beato José Lourenço e padre Cícero; Frei Damião; João Pedro Teixeira, sua esposa Elizabeth e as Ligas Camponesas; 1ª e 2ª Feiras de Arte, Ciência e Tecnologia da UFRN, cujos temas centrais foram, respectivamente, “A Problemática da Seca” e “A Questão Nordestina”; Dom Luiz Flávio Cappio e a greve de fome contra a transposição do rio São Francisco; poeta Patativa do Assaré; Chico Daniel e o mamulengo; meus parentes repentistas, cantadores de viola, João, Sebastião e Joacy Zacarias; as lindas ruralidades de Pendências, Alto do Rodrigues, Ipanguaçu, Carnaubais e Açu. Na flor da juventude, dirigente da Agremiação Carnavalesca Os Bruxos, de Macau, todo ano tínhamos que andar mato adentro para arranjar trator e carroças que adornávamos com alegorias e encantávamos o povo. Um dia, sozinho e a pé, fiz uma batalha dessas e quase me dei mal. Cheguei a Pendências ainda manhã cedo, lembrando os feitos de Felix Rodrigues Ferreira, seu fundador. Contemplei a imagem de São João Batista (que clamava no deserto, precursor de Cristo), parti em direção ao rio e o atravessei.
Liso e sem articulação com proprietários, na moral, tínhamos que sanar o problema de carroça e trator. As propriedades rurais, distantes umas das outras, me fez embrenhar-se na mata. Pisei trecho pedregoso, passei por carnaubeiras e ao largo de batatal, mandiocal, milharal e feijoal. Conversei com roceiro, roceira; andei por caminhos intransitáveis de automóvel; vi cenários tão bonitos que pareciam de conto de fadas. Na ânsia de retornar com boa notícia, empolguei-me. Quando dei fé, o ocaso da tarde estava chegando. Perdido, cansado, faminto, com sede e sem conseguir o intento, aportei numa casinha de taipa, pedi água e orientação sobre bom percurso na volta. A mulher olhou pra mim e disse: é dos Zacarias. Fiquei admirado. O leitor sabe que o semi-árido não pára por aí. Para se ter uma idéia, na região das cactáceas brasileiras, inobstante as dificuldades, o rebanho de cabras e ovelhas conta com 8 milhões de cabeças. Pendências é porteira de entrada na caatinga e portão para mergulho no litoral. A ditadura militar me fez passar uma temporada de mais de meio ano residindo em Pendências. Depois relatarei esse episódio.

Renan Ribeiro de Araújo – Advogado