quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

VINTE ANOS DE CONSTITUIÇÃO


O ditador, pretendendo que sua realidade própria (uma ficção) seja mais verdadeira que a própria realidade, propaga a imortalidade do império. Mas, é o contrário, ditadura não tem futuro. Pode durar, mas cai. Como Ivan Lins canta, cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada. Essa verdade serve à vitória da humildade sobre a soberba. Ninguém pode amordaçar uma nação eternamente. O leitor sabe, tirania é tirania. O monstro não é flor que se cheire. Mesmo os regimes de força bem intencionados precipitam monstruosidades. O sistema de arbítrio multiplica a intolerância e institucionaliza a maldade. O mal se dissemina pelas instituições do Estado, vindo das entranhas de seus aparelhos ideológicos. No frigir dos ovos (falando rapidamente), tudo degenera em atrocidades e vis injustiças. O cidadão independente, bem informado e altivo logo passa a ser vigiado, bloqueado, reprimido. O intelectual emancipado, sujeito com intuição peculiar, sabedor da propriedade que faz o calor evaporar os líquidos, detendo conhecimentos de inatismo, empirismo e leis científicas, torna-se um subversivo em potencial. Sua fala faz tremer os alicerces do edifício repressor. Seu senso crítico não mata, mas tem a força de uma bomba atômica. O romancista Jorge Amado, intitulando o primeiro livro da Trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade”, chamou a ditadura de Getúlio Vargas, o Estado Novo, de ásperos tempos.
Jornalistas denominaram “anos de chumbo” ao inferno ditatorial que reinou no Brasil de 13 de dezembro de 1968 (edição do AI 5) até março de 1974 (final do governo Médici), período mais duro (repressivo ao extremo) da ditadura militar iniciada em 1964. Também - ou principalmente por isso - pela edição do Ato Institucional nº 5, o golpe no golpe, o enrijecimento do rígido, o escritor, jornalista e professor universitário Zuenir Ventura disse que 1968 foi o ano que não terminou. O mando despótico do governo autoritário age com centralismo absolutista. Engendra opressão, situação de direito entortado, raquítico, submetido, subjugado, amedrontado. A transparência desaparece de vez. As autoridades ficam obscuras, sisudas, dão medo, até porque não respeitam pátria, Deus, mamãe nem papai.
Estado de Exceção, governança discricionária, e tal e coisa e coisa e tal, dá um nó na garganta, uma vontade de chorar. As liberdades individuais e coletivas deixam de vigorar. O indivíduo e a imprensa são brutalmente censurados. Um muro descomunal, cheio de sentinelas, separa as pessoas e castra a convivência humana. A multidão faminta não nota o valor do Estado democrático porque no Brasil tanto a ditadura como a democracia têm lhe negado possibilidade de ascensão social, não contempla sequer seus direitos humanos básicos. Por um lado, a tortura, crime inafiançável, comumente praticada nos desvalidos; por outro, o incentivo ao consumismo desenfreado, sem levar em conta a abismal desigualdade social, a avassaladora maioria sem condições econômicas de consumir.
No Estado policialesco, um paradoxo, não há segurança, a população fica desprotegida. Até vigia de rua se arvora a dar tapa na boca de gente, sem mais nem menos. Como ninguém carrega na testa o nome de sua ideologia, qualquer um pode ser preventivamente enquadrado e levado ao porão de martírio. O leviano delator expõe inescrupulosamente seu dedo duro. Uma agonia. Depender do humor do algoz é triste. Ser arrancado do próprio lar, levado ao cárcere, sem defesa nem contraditório, no pior dos sistemas jurídico-penais de natureza inquisitorial, não é mole. A pusilanimidade toma conta do meio político. O exercício correto da política é declarado proibido. A treva se instala, o brilho some da pele, o riso foge do rosto, a praça fica abandonada.
A tripartição do poder deixa de existir. Impõe-se a máxima de que não existe verdade nem razão nem justiça fora da cúpula do partido que está mandando. Reina o arrumadinho, a patifaria, o silêncio compulsório. O executivo aterroriza, o legislativo fica caudatário dos desmandos e o judiciário vira tribunal de exceção. Manda quem pode, obedece quem tem juízo. O leitor sabe o que isso quer dizer. Terror é terror, seja branco ou vermelho. O mundo inteiro estarreceu-se quando, na fase de distensão lenta, gradual e segura do governo Geisel, agentes de linha dura assassinaram o croata judeu, naturalizado brasileiro, jornalista e professor Wladimir Herzog, o Wlado. A gota d’água. Os protestos se estenderam por todo o planeta. Leitor amigo me desculpe por deixar o desfile de moda, os gols de Pato e o Big Brother Brazil de lado e tratar desse assunto. Ditadura... Ainda de luto, luto para que nunca mais ocorra. No ano em que a Constituição de 1988 completa vinte anos, cabe reflexão.
Renan Ribeiro de Araújo – Advogado